[1] A distinção entre os cisnes branco e negro, assim como a afirmação de que a dançarina protagonista do balé Tchaikovskyano teria necessariamente que sintetizá-los, abrigando-os no mesmo peito e manifestando-os na mesma carne, leva-nos a pensar nos princípios apolíneo e dionisíaco tão matutados por Nietzsche. Nesta obra-prima do cinema contemporâneo que Aronofsky dirige com uma rara maestria e assemelhando-se a um maestro, uma radical “metamorfose” é exigida da protagonista Nina (Natalie Portman, vencedora do Oscar de Melhor Atriz por este papel).
Para que ela se alce às alturas que esta obra-de-arte exige ela precisa encarnar o cisne negro – luxuriante, pródigo em potência emanada fora dos controles redutores do aparato racional, arrebatador em sua noturnidade selvagem… Isso exige uma injeção de “êxtase dionisíaco” no sangue demasiado apolíneo, controlador e racionalista de Nina – e o filme é o retrato desta injeção, em doses cavalares, de “dionisismo” nas veias de uma artista que quer devir algo além de seu estado atual e tornar-se, como canta Fiona Apple, a better version of me.
Nina precisa entrar em guerra contra si mesma e suas tendências apolíneas e “comportadinhas”: deixar de ser frágil, resignada, acovardada, ascética, metódica, auto-controlada, excessivamente racional, para permitir-se uma fecunda “loucura” auto-transformadora. Como bem sabem os poetas, às vezes enlouquecer é salutar e equivale a enloucrescer, para relembrar um lindo neologismo. Nada mais simbólico disso do que a poética imagem das penas negras emergindo das feridas sangrentas. O parto de Dionísio não se dará sem um pouco de derramamento de sangue!…
[2] Outro elemento comovedor de Black Swan é a celebração dos poderes redentores das rupturas com a normalidade. A rebelião, no caso de Nina, é necessária para seu amadurecimento, para que ela rompa com seu infantilismo kitsch: ela só poderá encarnar o cisne negro depois de jogar no lixo, num arroubo de rebeldia adolescente tardia, os bichinhos de pelúcia e o quartinho de filhinha-da-mamãe, todo pink, onde toda a sujeira e fúria da vida está excluída, escondida debaixo dos tapetes do conformismo. A criancinha trêmula vai caindo por terra conforme exige-se dela um “salto” psíquico que a tornaria apta a encarnar no palco algo tão oposto ao que ela tem sido.
Nina vai ter que mergulhar no pântano da vida podreira – raves regadas a ecstasy e sexo casual, imersão em um meio social onde vige brutal competição pela fama… – para enterrar a boa-moça carolinha que ela era e que não pode continuar sendo caso queira devir a artista magistral que traz o caos dentro de si e assim dá à luz uma estrela bailarina. Antes conformada a um papel submisso em relação à mãe superprotetora e control-freak, Nina enfim embarca nos turbilhões da vida adulta e nos mistérios da expressão artística genuína.
Depois do conforto branco do ninho, a aventura sombria e terrificante do vôo solo na noite cheia de incógnitas. Neste contexto, a aceitação da própria sexualidade também ganha corpo e engrossa o caldo de sua metamorfose – sendo que a personagem Lily, interpretada por Mila Kunis, serve como propiciadora de certos ritos-de-passagem onde Nina pode, pela primeira vez, abandonar o corrimão da heteronormatividade e entregar-se, ao menos em delírio, aos deleites de um erotismo lésbico que só pode ocorrer depois que ela esmaga os dedos da mãe ao bater-lhe a porta na cara.
[3] O contraste entre os dois cisnes é também símbolo para uma diferença de atitude sexual: o cisne branco é recatado, reprimido, virginal; o negro é experenciado, libertino, sensual e sem travas. Uma das primeiras “lições de casa” que Leroy (interpretado por Vincent Cassel), o diretor do espetáculo, faz à sua discípula é a recomendação para que masturbe-se. Ele a fulmina com questões constrangedoras (“você é virgem? gosta de fazer amor?”), como se sugerisse que ela só poderia encarnar a personagem se pudesse se tornar menos “coroinha”, se desse vazão aos seus charmes eróticos sub-utilizados, se encarnasse a femme fatale sedutora e impiedosa…
Também Lily, quando leva Nina à balada, faz de tudo para que a amiga aprenda a tirar a calcinha com menos encanação (“live a little!”). A mensagem, em suma, seria: a libertação psicológica passa necessariamente pela liberação da piriquita. Wilhelm Reich não discordaria? No microcosmo do filme, onde o pai está ausente do lar de Nina, é a mãe que atua como a autoridade que impõe a repressão sexual e tranca a filha no infantilismo e no angelismo. É através do convívio em outro meio social, para além da jaula familiar, que ensina a Nina os benefícios de uma sexualidade liberta dos constraints impostos pela caretice reinante, ainda que o filme sugira que Nina mais delira do que vive de fato os enlaces lésbicos.
Na raiz da tragédia que se aproxima da consumação com a estréia do Cisne Negro, está também este excesso de imaginário, esta libido que se rebela mas que o faz através da projeção fantasiosa de relações que não são autenticamente vividas: Nina crê ter transado com Lily depois de tomar um porre na festa, poderia até jurar que sentiu os lábios de Lily lambendo sua buceta, mas no dia seguinte a suposta parceira sexual lhe revela que tudo não passou de um delírio, de uma fantasia sexual que Nina enfim se permitiu viver até o fim, mas sem abandonar o palco do imaginário e a jaula de seu quarto vigiado pela mamãe.
[4] Gosto que o filme, apesar de trabalhar intensamente com a metáfora císnica, opondo de modo enfático o “jeito-de-ser” do cisne branco e do negro, não faça disso um maniqueísmo. Dizer que a desrepressão da sexualidade, a rebelião contra a família e o aventurar-se no vasto caótico mundo é entrar para os domínios sombrios do “Mal” é apenas um preconceito cristão, como poderia dizer Nietzsche. Ninguém neste filme está pregando feito um padre a respeito da malevolência condenável do dionisismo. Pode ser que muito mais “sombrio” e “maléfico” do que a encarnação do cisne negro seja a resignação ao destino de cordeirinho inofensivo, que carrega mudo suas cruzes.
A força transbordante e impetuosa do cisne negro que dança em êxtase é muito mais gloriosa do que a desgraçada queda suicida do cisne branco. Vejo um emblema da obra na ascensão entusiasmante de Dionísio rumo aos rodopios de quem transcendeu os controles excessivos implantados pelo racionalismo, em contraste com a melancólica aspiração-pelo-chão e aesão-à-submissão do Cisne Branco, tão malditamente cristão.
Gosto que o filme de Aronofsky, fiel a um certo nietzschianismo, não sustente que o branco é a encarnação do Bem e o negro do Mal; ao contrário, sugere-se que o Artista realmente expressivo nasce de uma capacidade para sintetizar estes dois princípios, transitar entre eles, numa circulação ousada pelos domínios de Apolo e Dionísio, de Cristo e de Baco, de sofrimento e de êxtase… O filme aponta para o mistério da síntese entre caos e cosmos que dá uma ressonância imorredoura à obra de certos artistas que chamamos de “imortais” apesar de estarem mortos e apodrecidos – e entre eles figura, é claro, o gigante Tchaikovsky.
Não se trata de escolher um lado na exclusão do outro, mas ter a disponibilidade para ser habitado tanto por cisnes brancos quanto por negros… O ser humano integral, mescla ousada de anjo e demônio, desgostoso de ser santo ou ser besta, nunca estacionado em nenhum desses pólos e sempre atraído por ambos, cambaleia pela Terra no desnorteio desses obscuros magnetismos…
[5] Prato cheio para psicanálises, o filme decerto descreve uma personalidade sob um grau de tensão descomunal, resvalando para a alucinação, a esquizofrenia, a psicose e a auto-mutilação. Faz refletir: algum grande artista pode ter temor da insanidade, ou este “medo de ficar louco” é justamente aquilo que impede que, nas “pessoas normais”, o artista venha à tona?
Me lembro do príncipe Míchkin de Dostoiévski, em seus ataques epiléticos em momentos de hiper-sensibilidade e de transe místico, e de Artaud, de Van Gogh, de Arnaldo Baptista, do próprio Nietzsche… Tantos indícios de que grandes mananciais artísticos jorram quando o sujeito abandona sua normose, enfrenta seu pavor de enlouquecer e se dirige para os abismos! Me parece que Black Swan simboliza um pouco isto: a tentativa de auto-transcendência, a luta por ascender ao máximo de expressividade artística, através de um perigoso (mas potencialmente frutífero!) flerte com a insânia.
É preciso desrespeitar as placas que a manada dos normais e a sociedade disciplinar antepõe à beira dos abismos para neles saltar, “testando as asas na queda” como dirá lindamente Kurt Vonnegut. É verdade, dirão, que Nina se estrepou, que feito Ícaro ela tentou voar com suas asas artificiais mas as teve derretidas pelo sol excessivo dos refletores. Mas uma queda como esta, uma morte trágica tão emblemática e expressiva, é muito mais do que a vida inteira dos que nunca caíram pois sempre tiveram medo de altura e assim ficaram sempre seguramente de mãos retidas nos corrimãos da normalidade limitante.
[6] A confusão psíquica de Nina é muito bem explorada através das inserções de alucinações, fantasias e atos falhos com os quais Aronofsky constrói um thriller psicológico de tintas Hitchcockianas. Também um paralelo com Clube da Luta é facilmente traçável: Tyler Durden também era uma espécie de cisne negro (todo ímpeto, arroubo, catarse e sex appeal) que incendiava a pasmaceira acomodada e rotineira do personagem de Edward Norton (aparentemente bem adaptado à sociedade de consumo, produtivo, funcional…).
O “eu real” e o “eu ideal” , a máscara social e as obscuras e secretas tendências íntimas, mesclavam-se na percepção subjetiva até que não se sabia mais quem agia, se o homem ou sua sombra imaginária, se o conformista normótico ou seu alter-ego rebelde e revolucionário… Também Nina passa o filme inteiro assombrada pela presença fantasmática de um “ideal” que ela sente-se impelida a encarnar. Se ela não se tornar semelhante ao cisne negro, se não se aproximar deste ideal dionisíaco e tyler-durdeniano, ela não só deixará de se alçar aos píncaros da celebridade, sendo substituída e relegada, como despencará em sua própria auto-estima e se considerará um completo fracasso humano.
O filme de Aronofsky, apesar de seus elementos trágicos, não parece querer que derrubemos lágrimas pela morte do cisne branco, mas muito mais que nos inflamemos de admiração pela auto-superação da dançarina que, em heróica conquista, ao cabo de duros sacrifícios, encarna um deslumbrante e fatal Cisne Negro, pagando o preço, como acontece sempre, pela radicalidade de sua metamorfose.
Por Eduardo Carli de Moraes
educarlidemoraes@gmail.com
https://www.acasadevidro.com/cisnenegro
pablo vilaça || guardian || flick philosopher || omelete || rapadura || cineplayers || cinema de buteco || fórum making off
Roger – Pareceu que no filme o diretor da companhia tenta extrapolar essa “perfeição” que ela buscava (e até alcançava quando interpretava o Cisne Branco) através apenas da técnica e dos treinos supervisionados pela mãe. Ele busca transcender a “racionalidade” com que ela encara o balé (e a vida também) através do sexo.
Não que o sexo seja a única porta de saída para a vida de caxias que ela levava. Mas achei que o final, com ela caída, sangrando, em êxtase pelo sucesso de sua interpretação, remete muito a perda da virgindade, o rompimento do hímem, a transformação dela em garota para mulher.
Não é a toa que a maneira como o Aronofsky dirige a sequência dela dançando como Cisne Negro na noite do debute, traz uma intensidade semelhante a um orgasmo. Inclusive, o momento em que ela sai brevemente do palco, com os olhos vermelhos e com respiração ofegante, é de uma sexualidade estranhamente bela.
Gostei muito do filme. E o texto é muito bom! Troca de idéias sobre filmes são ótimos por nos trazer novas idéias.
Isaac Souza – Considero este blog um achado. Difícil encontrar autores com tanta perspicácia, quando o assunto é estética. A análise estética atualmente se restringe ao apontamento de fatores formais (apolíneos), enquanto que o transbordamento de vida, a intensidade de paixão e o sentido filosófico, psicológico profundo são ignorados ou reduzidos a estereótipos ou emocionalismos. Sua abordagem é ótima, e seu verbo poderoso. Obrigado.
Nádia C. – que inveja! Gostaria de ter escrito isso, haha. Eu procurava palavras pra defender Cisne Negro de acusações infatis que ouvi por aí, agora encontrei.
Marc Gogh – Eduardo, passeando pelo Face descobri seu blog e como ele trata tão profissionalmente temas culturais, passou a meu favorito. Tenho a mania de analisar alguns filmes que gosto também e posso concordar em tudo com o Isaac Sousa acima. Apesar que o meu foco fica mais do cotidiano, numa fala mais informal, como se pode ver na publicação sobre O Cisne Negro que fiz (http://aposentadativa.blogspot.com.br/search?q=cisne+). Ler seus escritos vem ampliando meu referencial. Agradecida.
(Originalmente publicados em Cinephilia Compulsiva)
Novos comentários podem ser realizados abaixo
Publicado em: 21/11/21
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia